Rafaela

Eu sinto a chuva daquela quinta-feira como hoje. Gota doce.
Lembro do gosto de lágrima na minha boca. Gota salgada.
O frango que não tinha gosto. Porque minha mãe, preocupada, me implorou que eu comesse.

A força da madrugada em claro, no completo breu.
A luz do Sol quando nasceu, na sexta feira mais fria da minha vida.

Mas, antes de escrever isto aqui, eu fiz o de sempre – Abri o Spotify e coloquei música pra tocar.
E tudo que eu senti vontade de escrever, não é sobre o dia que não houve.
Sinto vontade de escrever sobre todos os outros dias que aconteceram antes dele.
E sem me envergonhar da palavra: PORRA! Foram dias incríveis. Incríveis como ele.

Todos os dias que houveram com sua mágica. Com sua sonoridade, com seus ossos em movimento, e com o salgado suor de seu talento indescritível.

Pra começar, o vi pela primeira vez no programa do Gugu, e lembro dos meus pais em frente à TV com olhos animados: “Ala, é o Michael. Aumenta a TV, Beto.” – E eu vi, aos 4 anos, com meus olhinhos de criança vesga, os efeitos pirotécnicos e aquela gente gritando por um homem parado de óculos escuros. Que quando ele se moveu, magia aconteceu.
O dia que felizmente…houve.
 E que pavimentou o resto da minha vida.

Lembro da minha mãe dizer que meu pai chamou a atenção dela porque ele se parecia com Michael na era Thriller. E ele, por sua vez, tão criança quanto eu, pulava o muro da escola em tempo de ver o final do extinto Clip Trip – em que todo dia encerrava com algum clássico dele: O Majestoso.
Lembro da minha mãe dançando como uma zumbi na cozinha, dia de domingo, quando a música ressoava em casa para fazer o almoço.

E eu nunca nem notei que ora Michael Jackson era negro como meu pai, e depois, branco como eu.
Tudo que eu sabia era um Michael pra cada um de nós. “Pai, você é o Michael de Thriller, e eu sou o Michael de Remember the Time!”

Crianças e sua ingenuidade completa, não é MJ? 🙂
Quando me disseram que aquelas imagens eram Michael no Pelourinho – onde nasci – pra mim era o mesmo que dizer que ele estava tão perto quanto a esquina, e chorava desesperada querendo ir até lá.
Mas Rafa, não era um mundo globalizado, as noticias e imagens demoravam, minha criança!
A Bahia não é esquina com São Paulo, e aquilo não era ao vivo, meu bem.
Agora você sabe que não foi má vontade dos seus pais em levar você pra vê-lo.

Cresci assim. Eu quis me reabilitar o mais depressa possível dos meus enfrentamentos médicos quando criança e queria que Michael um dia ouvisse minha história.
Me mantinha fiel na ideia que ele visitaria o hospital onde eu estava, e me diria estar orgulhoso de mim.

E comigo ele esteve. Em forma de CD, dentro do meu discman, dentro dos meus ouvidos, em cada um daqueles dias.
Eu sei, eu escrevo textos longos demais. Mas são muitos dias pra se agradecer.

Tive o meu primeiro contato com política, com conhecimento, com ser a sua própria identidade. Minha didática do que significava injustiça. E que esta, me dava vontade de gritar. – Eles realmente não se importaram porra nenhuma com a gente. Hoje, menos ainda.
…Do que era comunhão, do que era arte, do que era sentimento. Do que era traição. Do que era perseverar.
O dia em que sua inocência foi provada, e eu pedi pelo amor de Deus pra que minha mãe me buscasse na escola, porque eu não poderia perder qualquer segundo daquele dia que precisava ser vitorioso.
Eu assisti à sentença com os joelhos no chão, mesmo com dificuldade. E minha mãe perguntou: “Pra que isso, filha?”
Meu pai só respondeu: “Deixa ela.” – Deus me livre correr o risco de não fazer exatamente tudo ao meu alcance praquele dia ser o dia que eu precisava que fosse.
E foi. Dez vezes livre. E eu fiz a única coisa possível: Chorei e coloquei Billie Jean pro bairro todo ouvir.
Minha mãe saiu gritando pelo quintal: MICHAEEEEL!!!!!!! INOCENTEEEEEEEEEEEEE!!!!!!!! – Pra que, mãe?

Por amor.

E ainda que seja extremamente dolorido, não sinto aquele dia como se o amor fosse arrancado de mim.
Pelo contrário, ele se fez.
Eu recebi a mensagem que me fez entender o quão sério seria aquele dia em diante. Eu conheci pessoas naquele dia, porque nos juntamos em oração.

E sabe o que é mais fantástico, MJ? Elas ainda estão comigo.
Falei há poucos minutos com elas. Onze anos depois.
Hoje, o dia que não houve, eu sinto você. Mesmo que em outros dias eu sinta que sua força não está mais nesse plano.
E também como poderia? Esse já não é mais o mundo que você ajudou a construir. Está desgraçado demais.

Mas a certeza que eu tenho, é que eu sou a pessoa que você ajudou a construir. E sigo.

Onde quer que você esteja, obrigada.